terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Os conselhos e a temporada de final de ano letivo. Ritos de passagem?


Antonio Gil Neto

“Ouça um bom conselho/
Que eu lhe dou de graça/ Inútil dormir que a dor não passa.” (in Bom Conselho, Chico Buarque)
Seguro a xícara de café ainda fumegando. Boto um pouco de leite frio para acalmar a quentura e automaticamente ligo a tv, mas olho a tela da janela. Tenho preciosos minutos de existir nessa manhã comum e singular. Viro para a outra tela. Acabo por beber uma notícia do jornal: em duas escolas da capital, alunos mais que  alvoroçados comemoram o encerramento do ano letivo. Fabricam barbaramente uma chuva de pápeis rasgados feito confete e serpentina improvisados através de uma rápida destruição de livros, cadernos, apostilas e textos utilizados ao longo do ano. Vi a frente das escolas inundadas por esses materiais esfacelados em burburinhos de vitória. O que me fez desligar a tv, mas me ligar e compreender melhor a minha decepção.
Em meio a tanto sentimento ruim fiquei pensando se o que acontece pode nos revelar algo mais desses rituais que marcam os chamados finais de anos letivos.
Logo me aparecem aos olhos essa temporada marcada pelos conhecidos conselhos avaliativos... De “conselho” muitas vezes eles pouco têm, ninguém aconselha, se aconselha, indica e se agrega a nada. Quase sempre é espaço generalizado de cumprir exigências, quando não vira passarela de lamentações ou exposição de um arsenal de lavados argumentos de defesa ou acusação sempre distantes de alguns réus inconfessos. Um mar de tarefas burocráticas plenamente justificáveis a quem se aprouver. (Tomara que o conselho de sua escola não seja nada assim…) Quando não fica com ar de caça às bruxas e tudo vira um campo de julgamentos sem fim. Muitas vezes um mesmo aluno, em análise, passa de bandido a mocinho, dependendo dos olhos de quem vê. Acho que a divergência de olhares que se concretizam num conselho que se preze devem ter seu prumo numa espécie de colheita efetivada no ano. Afinal,  o que produzimos?
Precisamos pensar que um conselho de classe não é e nem determina um fim. Mas sim, é desfecho. Encerra-se um ano letivo para reabri-lo em nova temporada: o próximo ano letivo que já está batendo a nossa porta. Os protagonistas - alunos, educadores e pais – os que atuaram no ano que passou muito provavelmente serão os mesmos do ano subsequente. Desempenharão outros e novos papéis, dependendo da trama que será oportunamente oferecida. Como um círculo vicioso onde tudo de repete ou um ciclo de ciclos que poderão se renovar nos ritmos vivenciados.
Que perspectivas temos em meio à exaustiva enxurrada de conselhos de classe? Boa pergunta! Passam pelos nossos crivos muitas vezes tão indefinidos uma legião de alunos e classes mirados sob as mais diversas óticas. Que horizontes vislumbramos depois dessas juntas pedagógicas? Dá vontade de sumir, ir para casa descansar, fazer outra chuva de papéis com as lições que levamos adiante? Ou saímos com nova orientação, perspectivas  para recomeçar?
Nesses conselhos de final de ano o que precisa estar em pauta, muito mais do que verificar o rendimento obtido pelos alunos é a boa oportunidade para vir ao centro as nossas vozes e olhares, os que estarão presentes e voltarão a realizar o próximo trabalho educacional:  aos moldes do que rolou durante o ano ou com alguns acertos e novos ajustes. Já imaginou se pudéssemos assistir a um documentário feito anonimamente sobre o que rola a portas fechadas ou abertas, em todas as áreas, salas e espaços da nossa escola? Que fulgurantes surpresas poderíamos ter ao nos revelarmos numa dúvida em continuar ou redirecionar alguma atividade pensada para fazer sucesso, mas que encontra o seu maior burro nágua, por exemplo. Já pensou?  Podemos nos tornar simultaneamente diretores, protagonistas e espectadores críticos desse nosso fazer. Nesse espaço de rever o filme, o conselho, entraremos com cara, coragem e medos desvelados para engendrar jeitos que possam renovar o processo coletivo de ensinar, não é?
Fiquei pensando, agora que a xícara já está fria e espera outro café, que muitos guardam num lugar especial da memória a marca indelével da presença e do encontro com um professor. Seremos linha dágua na vida de nossos alunos? Investimos nesse potencial que temos em ser referência? Quantos pais irão à escola nesse fim de ano agradecer pelo trabalho realizado, ou seja por seu filho ter usufruído do direito de aprender? Fico vilsumbrando que a escola talvez precise investir nesse lugar de reconhecimento e gratidão. Por ele, um mapa de aprendizagens…
É bem comum nessas temporadas haver um clima de stresse generalizado, quando os educadores parecem sofrer crises existenciais como se faltasse  brevíssimo tempo para terminar algo difícil e pezaroso. Penso que estas crises viram ritual sem importância. Por outro lado, em tempo de crises podemos reestruturar as nossas ações, desejos e intenções. Mas, não embarquemos em paixões tristes. É hora de avaliar pra valer os verdadeiros contornos sobre o que poderá nos colocar em outras trilhas. Mais esperançosas e possíveis.  
Talvez nessa banalização de fim ou de dever cumprido fosse hora de se iluminar entre os educadores que se comprometem com o próximo fazer a ideia de balanço que nos potencializa para recomeçar bem e melhor. Não sei como algumas pessoas aguentam repetir tudo de novo, sem repensar sobre ele e transformá-lo como café fresco. Como se o ano letivo fosse uma longa lista de palavras iguais para se copiar. Ou um eterno requentar…
Acho que foi-se o tempo em que a reprovação era algo temido como fantasmas emergindo do porão mais subterrâneo. Hoje em dia, mais do que reprovar talvez seja mais útil pensarmos em aprovar estratégias e como torná-las viáveis para que os alunos aprendam, se interessem por temas e assuntos, avancem, se apropriem de conteúdos que lhes serão significativos, leiam literatura de verdade, se expressem interativmente, vislumbrem futuros. Fico na dúvida se todos os alunos com boas notas também sentem mesmo o sentimento de dever cumprido, algo almejado e atingido. E de quebra uma pitada de ansiedade pelas férias. Só sinto agora é que o trabalho coletivo nas unidades escolares poderiam estar mais a serviço de saber ou procurar chegar mais perto da dificuldade dos alunos, descobrir o que elas escondem para poder vislumbrar ações que possam ajudá-los a sair dessa.  Dizer que está mal é fácil. É preciso investigar mais e se lançar de estratégias e atividades diversificadas e planejadas que se alimentem dessas problemáticas e se transformem paulatinamente  em soluções. Não seriam as dificuldades um campo de pesquisas em nosso próprio fazer?
Já fiz parte de muitos conselhos nos quais todos os alunos tidos como indisciplinados pelas mais diversas causas eram logo pendurados no paredão dos reprovados. Ou melhor, dos que não têm jeito. Não estariam aqui mesclados os tantos tipos de inteligentes? Raras foram as vezes em que os educadores pensaram séria e incomodadamente em analisar um pouco mais a fundo essa situação de emparedamento pedagógico. Eles não sabem nada? Não saberão? Sem chance nenhuma? Não temos nada a ver com isso? Poucos se enveredaram em fazer algo especialmente arquitetado para ser posto a prova exclusivamente para eles, os emparedados.
Um  conselho é o lugar onde se faz  jogo limpo. Ou seja, diante de nossos resultados  verificamos se saberemos e como poderemos mudar o jogo para ele ficar melhor. Não é um jogo de caça às bruxas, de inquisição pedagógica, de eleger heróis, expor os vilões ou nomear os carentes. Nem é lugar de passes de mágica. É lugar de transparências, de equilibrio. De ponderar, analisar, levantar hipóteses educadoras, criar, estabelecer rotas de mudança. É mesmo um ritual de passagem.
Espero não estar dizendo que os conselhos não funcionam tão bem. Nem posso dizer isso do seu conselho, mas você pode me emprestar o seu olhar e sua voz imperceptível e dizer isso como sentir. Espero vislumbrar novas possibilidades para ele. Para se transformar em lugar de desfecho. O que se abre para novas histórias. Com uma leve vontade de quero mais.
Você até poderia me dizer (ao dizer agora para os seus botões leitores) como os alunos da sua escola estão sentindo a rota final desse ano letivo. Veja só o que deu ver o jornal logo de manhã!

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