Por Elizeu Tomasi
Catar feijão 1.Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
2.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.
(João Cabral de Melo Neto)
Texto escrito para disciplina de Literatura Brasileira III da UFSC
João Cabral de Melo Neto
marcou a poesia modernista pela simplicidade em que expressou seus versos. De
uma maneira simples e livre, falou sentimentalmente sobre o homem e sobre a
realidade por este vivida, mas não limitou sua poesia a temática regionalista.
Com a mesma simplicidade que falou sobre a vida Severina de Severino, o poeta
pernambucano aventurou-se também a falar sobre o próprio ato de escrever.
Em Catar Feijão, João Cabral de Melo Neto, de
uma maneira simples, mas precisa, compara o ato de escrever com o ato de catar
feijão. Buscando a significação do verbo “catar”,
o dicionário Michaelis (2008) traz a
definição “recolher um por um, buscar, pesquisar”; já no Cegalla (2005), encontramos: “retirar impurezas de, escolher”. A
partir deste único vocábulo, é possível identificarmos a grande metáfora criada
pelo poeta. Como o individuo que cata feijão, o escritor precisa buscar
palavras, recolhê-las uma a uma, pesquisar, retirar impurezas; um trabalho
árduo para ambos: o escritor e o catador de feijão.
O poema é
dividido em duas estrofes cada uma com oito versos. Na primeira estrofe, o
poeta expõe a simplicidade que ambas as ações apresentam. Enquanto no catar do
feijão jogam-se os grãos na água em
uma bacia, no escrever as palavras são, simplesmente, jogadas em uma folha de
papel. Em seguida, joga-se fora o que
boiar. Com um soprar, tira-se do feijão o que é leve, e da escrita o que
foi supérfluo não necessário, que acaba sujando a escrita tornando-a complexa
de mais. Observamos aqui, uma espécie de explicação para seu estilo simples e
econômico de escrever. Nesse sentido, o significado mais adequado para o verbo
catar, dentro do texto, é o de escolher. Escolher palavras, escolher feijão;
como define CEGALLA (2005) “retirar as
impurezas”.
Já na segunda
estrofe, ao aproximar as duas ações João Cabral de Melo Neto afasta o catar
feijão do escrever. Um risco comum as duas praticas, é o de deixar algo impuro,
mas não leve. Entre os grãos de feijão, pode ficar um grão qualquer, pedra ou indigesto. O resultado, com certeza seria
imastigável, de quebrar os dentes. No
se tratando do escrever, a pedra resultaria em algo diferente que, daria à frase seu grão mais vivo, desafiando o
leitor e impedindo a leitura fluviante,
flutual. Em outras palavras, o que é
imastigável entre os feijões, prende a atenção do leitor, isca-a como o risco evitando a leitura superficial.
No que diz
respeito à estruturação das estrofes, cada uma delas é compostas de dois
quartetos, bem definidos e marcados pelo ponto final. Os dois quartetos da
primeira estrofe são bastante claros e objetivos denotando as duas ações que
são comparadas ao logo do texto: o escrever e o catar feijão. Já os dois
quartetos da segunda estrofe denotam riscos, dificuldades e as conseqüências de
cada uma das ações. A pontuação é
bastante simétrica, podendo ser observado que as duas estrofes apresentam uma
pontuação bastante parecida.
Além da
metáfora que o poema apresenta em relação ao ato de escrever e catar feijão;
podemos encontrar também algumas claras antíteses dispersas ao longo dos versos
como: o feijão/material X palavra/ideal, água/liquido X papel/sólido, boiar X
afundar, leve X pesado, ainda há uma evidente contradição entre o grão imastigável, que quebra o dente e a pedra, que dá a frase seu
grão mais vivo. No quarto verso da segunda estrofe, nos deparamos com a
sensação de leveza e superficialidade da leitura
fluviante, futual que de repente é interrompida pelo risco que a pedra representa.
Como modernista
que é, encontramos na poesia de João Cabral a liberdade formal, que dispensou o
uso das rimas no poema. O ritmo do poema
é dado pela própria metalinguagem do poema, ou seja, pela escolha de palavras
oxítonas ou paroxítonas intercaladas com monossílabos dando-nos a sensação
própria de quem “cata” o feijão, escolhe palavra por palavra eliminando suas
impurezas em um processo manual e consecutivo.
Além desse recurso, o
ritmo do poema também é marcado pelo uso constante de assonância e de
aliteração. No verso dois da primeira estrofe, encontramos a aliteração de g repetido em todas as palavras não
monossílabas do verso: joga-se os grãos
na água do alguidar. No sétimo verso da segunda estrofe,
temos a aliteração de t: obstrui a
leitura fluviante, flutual. Assim como a aliteração, a
assonância está fortemente marcada na poesia de João Cabral. As vogais a
e o são recorrentes ao longo do poema
principalmente no quarto e oitavo versos da primeira estrofe: e depois joga-se fora
o que boiar; e jogar fora o leve e oco,
palha e eco. E
no já citado verso obstrui a leitura
fluviante, flutual são as vogais i e u
que são ressaltadas.
Enfim, João Cabral de Melo
Neto com seu emblemático poema Catar
Feijão, brilhantemente explicou o árduo trabalho de escrever, o que muitos
outros poetas e teóricos já haviam feito. João Cabral, em sua simplicidade “despiu
de traços supérfluos”, como afirmou BOSSI (2003, p.471) e como um catador de
feijões, jogou os grãos na água do
alguidar, ou melhor, as palavras na
folha de papel. Jogou fora o que
boiou, soprou o que era leve e oco,
palha e eco, imastigavel de quebrar o
dente, as impurezas e excessos... Deixando, no entanto a pedra que deu ao texto seu
grão mais vive que nos permitiu uma leitura desafiadora e nada fluviante e flutual.
BIBLIOGRAFIA
GUALBERTO, Ana Claudia Felix; RAMOS, Tânia Regina Oliveira;
CORSO, Gizelle Kaminski; Literatura
Brasileira III: 7° período, UFSC. Curso de Licenciatura Letras –
Português na Modalidade a Distância - Florianópolis, 2013.
ALMEIDA, Tereza Virginia de Teoria
da Literatura II: 5° período, UFSC. Curso de Licenciatura Letras –
Português na Modalidade a Distância - Florianópolis, 2012.
MICHAELIS: Dicionário
Prático de Língua Portuguesa – São Paulo: Editora Melhoramentos, 2008.
CEGALLA, Domingos Paschoal; Dicionário
Escolar da Língua Portuguesa – São Paulo: Companhia Editora Nacional,
2005.
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