Possuidores de uma perfeita retórica e de uma habilidade ímpar de trabalhar com a linguagem, os sermões do Padre Antônio Vieira ficaram famosos pelo seu poder de persuasão. Esta habilidade persuasiva deu a Viera atuação na área da diplomacia e também acarretou problemas com o Tribunal do Santo Ofício.
[...] dois anos e quase três meses esteve Vieira na Inquisição de Coimbra incomunicável num cubículo de quinze palmos por doze, sem receber luz senão através de um corredor. Móveis, eram apenas o cântaro d’água e as vasilhas para os despejos. Livros, nenhum, a não ser o breviário e, mais tarde, a Bíblia. Não se sabe se, em atenção à idade – perto dos sessenta anos – lhe facultaram o regalo de um leito, uma mesa e um banco para redigir sua defesa escrita. (LINS, p. 120)
Seu grande prestígio como orador, porém acabou-lhe garantindo o perdão papal. De volta ao Brasil, preocupou-se em organizar seus sermões; dentre os quais encontramos No Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, ministrado no ano de 1654 na Igreja Maior da Cidade de São Luís no Maranhão, Vieira discorre sobre a relação antagônica entre a verdade e a mentira.
Apresentando estrutura fortemente conceptista, Vieira inicia seu sermão expondo a idéia, ou moral que vai defender: “A verdade e a mentira: a verdade do pregador e a mentira dos ouvintes.” Em seguida, o orador recorre (por diversas vezes) às Escrituras para enraizar e dar veracidade ao seu discurso. A fim de efetivar a compreensão de seu auditório, composto de gente de todos os tipos, Vieira confirma as Escrituras e seu discurso por meio de diversas alegorias e exemplos que melhor materializem o que diz, ou como diz:
Mais sucede nesta passagem dos ouvidos à boca. Como os ouvidos são dois, e a boca uma, sucede que, entrando pelos ouvidos duas verdades, sai pela boca uma mentira. Parece coisa de trejeito, mas é tão certa, que a primeira mentira que disse no mundo foi desta casta: uma mentira feita de duas verdades. (VIEIRA, 1654)
“No Maranhão até o sol e os céus mentem... No Maranhão não há verdade.” A um pregador é dado analisar a sua realidade, Vieira expressa na primeira afirmação a cultura de mentira que existia no Maranhão e na segunda afirmação sustenta a primeira por meio de um raciocínio lógico: se mentem não há verdade. O orador faz nessa passagem um jogo de ideias que sustenta sua argumentação.
Segue ainda a estrutura conceptista de Vieira abusando de analogias e comparações afim de melhor representar e materializar o que prega como na passagem a seguir onde o pregador compara a presença do diabo nas nações com características de suas povos fazendo uma espécie de caricatura dos povos europeus:
“Dizem que a cabeça do diabo caiu em Espanha, e que por isso somos furiosos, altivos, e com arrogância graves. Dizem que o peito caiu em Itália, & que daqui lhes veio serem fabricadores de máquinas, não se darem a entender, & trazerem o coração sempre coberto. Dizem que o ventre caiu em Alemanha, & que esta he a causa de serem inclinados à gula, & gastarem mais que os outros com a mesa & com a taça. Dizem que os pés caíram em França, & que daqui nasce serem pouco sossegados, apressados no andar, & amigos de bailes. Dizem que os braços com as mãos & unhas crescidas, um caiu na Holanda, outro em Argel, & que daí lhes veio – ou nos veio – o serem corsários. Esta he a substancia do apólogo, nem mal formado, nem mal repartido, porque, ainda que a aplicação dos vícios totalmente não seja verdadeira, tem com tudo a semelhança de verdade, que basta para dar sal à sátira. E, suposto que à Espanha lhe coube a cabeça, cuido eu que a parte dela que nos toca ao nosso Portugal he a língua, ao menos assim o entendem as nações estrangeiras que de mais perto nos tratam. Os vícios da língua são tantos, que fez Drexélio um abecedário inteiro, & muito copioso deles” (VIEIRA, 1654)
Antonio Vieira segue no Sermão da Quinta Dominga da Quaresma essa estrutura conceptista que ele mesmo propusera no Sermão da Sexagésima onde critica o Cult ismo de certos pregadores, que em lugar de desenvolver uma argumentação consistente preocupam-se em enfeitar a linguagem tornando-a incompreensível.
Assim neste sermão, da Quinta Dominga da Quaresma, vemos uma engenhosa construção argumentativa rica em alegorias, comparações criando contrastes (verdade/mentira), simbologias originais (se mentem não há verdade) sempre os apresentando por meio de raciocínio claro e lógico que envolvia o publico seduzindo-o às conclusões que a ele e ao objetivo do sermão interessavam; características estas que fizeram de Antonio Vieira o mais importante e persuasivo representante do Barroco no gênero da oratória.
ELIZEU DOMINGOS TOMASI - Literatura Portuguesa
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